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domingo, 1 de maio de 2016

Ruínas humanas

‘Onde está a ira daqueles com poder e obrigação de parar com esta carnificina?’, indagava a chefe da MSF na Síria

Em outubro passado, apesar da rotineira penca de novas erupções no conflito do Afeganistão, o fotojornalista australiano Andrew Quilty decidiu fazer uma pausa na insanidade da desgraceira, para melhor mostrá-la. Uma semana antes um AC-130 da Forca Aérea americana havia bombardeado “por engano”, um hospital operado pela organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) na cidade de Kunduz, em levas sucessivas que duraram uma hora.

A morte de 42 civis, inclusive vários integrantes da equipe médica, causara indignação mundial num ataque que a MSF cogitou qualificar como crime de guerra. A cobertura da mídia fora maciça, porém focada no horror imediato e na sucessão de versões enganosas criadas pelo alto comando para acobertar responsabilidades.  Mas, diante da multiplicidade de guerras em curso no mundo islâmico, também esparramadas pelo Oriente Médio e Norte da África, noticiário, atenção e mídia veem-se premidos a também migrarem de acordo com os focos de matança.

Quilty, porém, optou por não arredar pé de Kunduz. Queria fazer o necrológio do centro traumatológico bombardeado. Havia se passado uma semana desde o ataque. Começou pelo centro cirúrgico. Numa das salas havia o corpo de um homem ainda estendido sobre a cama em que seria operado. Estava de bruços, tinha uma sonda no braço esquerdo e um fixador de aço a amparar-lhe a coxa direita. Um pedaço do teto lhe cobria o abdome e o campo cirúrgico havia desmoronado sobre seu peito e ombros. Da cabeça restava apenas o queixo barbado.

O ensaio fotográfico feito por Quilty do que viu e publicou na revista “Foreign Policy”, acompanhado do perfil desse pai de 4 filhos que estava amarrado à mesa cirúrgica, já anestesiado, deveria ser material didático mundo afora. É o retrato de uma humanidade em ruína. A nossa. Dois dias atrás, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos por fim reconheceu erro humano e um encadeamento de procedimentos catastróficos que resultaram nos bombardeios múltiplos do hospital claramente sinalizado como tal. Embora o relatório admita que houve violação de leis envolvendo conflitos armados, nenhum dos 16 implicados será rebaixado de patente ou expulso das Forças Armadas. Sofrerão punição, porém seus nomes não serão divulgados.

Por uma horrenda ironia, também esta semana outro hospital apoiado conjuntamente pela Médicos Sem Fronteiras e o Comitê Internacional da Cruz Vermelha tornou-se alvo de bombardeio. Desta vez não foi no Afeganistão, mas em Aleppo, na Síria, e o ataque não foi de AC-130 americanos. As explosões múltiplas com dois minutos de intervalo estão sendo creditadas ao regime de Bashar al Assad, apoiado pelos russos. Para quem vive entre escombros há cinco anos, a nacionalidade da bomba há muito deixou de importar.

Até a noite de sexta feira, entre as ruínas do que era um centro de referência pediátrica numa região em que cada vida humana já é um milagre, contabilizavam-se 27 mortos. Entre eles, Mohammed Wasim Moaz, um dos últimos pediatras ainda com capacidade de atuar. Este foi o sétimo hospital da Síria destruído desde o início da guerra civil. “Onde está a ira daqueles com poder e obrigação de parar com esta carnificina?”, indagava Muskilda Zancada, chefe de missão na Síria da entidade ganhadora do Prêmio Nobel da Paz em 1999.

No mesmo dia, um montinho de gente — duas mulheres, quatro crianças e seis homens — embarcava na ilha grega de Lesbos rumo ao campo de Adana, na Turquia. Viajavam escoltados por agentes da Frontex, a agencia europeia da gestão de fronteiras externas. Haviam conseguido escapar da guerra, mas pisaram na Europa depois de 20 de marco. Tornaram-se, por isso, o primeiro grupo de refugiados sírios que, desde o polêmico acordo de 18 de março assinado entre a União Europeia e a Turquia, terá de seguir novas normas para poder requerer asilo — fora do continente.

Por enquanto, é o que têm a oferecer aqueles com poder a que se referia Zankada. A obrigação de parar com a carnificina fica mais uma vez adiada. E a ira? Onde foi parar a ira do mundo?

Fonte: O Globo -  Dorrit Harazim, jornalista