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quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

As vítimas de farda no Rio de Janeiro

O soldado Antônio Paiva é um dos 15 policiais assassinados só neste ano no Rio de Janeiro. O estado caminha para recorde de crimes 

Na primeira manhã do ano, o soldado Antônio Carlos Paiva levou um tiro na cabeça enquanto dirigia uma viatura da Polícia Militar na Avenida Leopoldo Bulhões, nas imediações da favela de Manguinhos, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Apelidada de Faixa de Gaza no passado, a avenida parecia apaziguada depois da instalação da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) na comunidade, em janeiro de 2013. Nos últimos meses, entretanto, o tráfico avançou novamente – e os tiroteios entre policiais e bandidos voltaram a ficar frequentes. Naquele 1º de janeiro, Paiva foi socorrido por colegas. Enquanto era levado às pressas para o hospital, sua mãe, Janaína Soares, teve um mau pressentimento em casa: “Era como se minha alma fugisse do corpo”, disse mais tarde.

Paiva se tornou a primeira vítima de 2017 da guerra travada entre policiais e bandidos nas ruas do Rio. Segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP), 135 policiais de folga ou de serviço morreram no estado em 2016 – 38% mais que os 98 dizimados em 2015. Só em janeiro deste ano, ao menos 15 policiais militares e civis foram assassinados, uma média de cinco por semana. Se o ritmo se mantiver, o Rio terá a maior carnificina contra suas forças de segurança das duas últimas décadas. Desde que as estatísticas começaram a ser registradas, em 1998, o período mais sangrento se deu em 2004, com cerca de quatro assassinatos de policiais a cada semana.

>> Vida de PM no Rio: desprezados, doentes e com medo

Paiva ingressara na PM havia cinco anos, e Janaína temia pela vida do filho desde então. Ela conhecia de perto os perigos da profissão. Seu marido, padrasto de Paiva, era policial civil e tivera o mesmo destino trágico do enteado: fora assassinado a tiros numa emboscada anos antes. Sem o arrimo de família, Janaína e os dois filhos ainda pequenos passaram a morar nas ruas da Baixada Fluminense. Abalado pelas privações da infância, Paiva decidiu seguir o caminho do padrasto. Achava que, ao entrar para a polícia, teria estabilidade suficiente para alcançar o sonho de cursar a faculdade de psicologia e cuidar da mãe, que sofria de depressão. Atingiu ambos os objetivos antes de morrer.

Seu primeiro trabalho na corporação foi no temido Complexo do Alemão. Com a ajuda das Forças Armadas, o conjunto de favelas foi tomado pelo governo do estado no final de 2010, mas voltou para as mãos dos traficantes mais tarde. Foi lá que, em julho de 2012, bandidos mataram o primeiro policial a serviço da UPP, a soldado Fabiana Aparecida de Souza. 

Depois do duro golpe na pacificação, o Alemão se fortaleceu como o quartel-general do tráfico no Rio. Para o então inexperiente Paiva, cada beco estreito do Alemão representava uma armadilha perigosa em seus primeiros anos de carreira. Certa vez, chegou a escapar da morte quase certa diante da explosão de uma granada lançada por bandidos. A tensão era tanta que o jovem soldado proibiu a mãe de assistir ao noticiário da TV. Janaína se recorda do alívio que sentiu quando o filho comprou um carro para trabalhar. Ao evitar o transporte público, Paiva corria menos risco de ser abordado por bandidos e ter sua farda descoberta na mochila. Os dois sabiam que, se houvesse um assalto no ônibus e os criminosos o identificassem, Paiva não teria chance. Morreria mesmo sem reagir.

Nos últimos anos, 70% dos policiais assassinados no Rio estavam de folga, segundo o ISP. Boa parte trabalhava de segurança a fim de reforçar o salário. Para evitar o “bico” arriscado, a PM criou um programa de horas extras dentro da própria corporação. Mas a recente calamidade financeira do governo emperrou a iniciativa, e os policiais voltaram a se expor no mercado paralelo. A Comissão  Parlamentar de Inquérito (CPI) da Assembleia Legislativa que investiga a matança diz que um agente da lei corre dez vezes mais risco de morrer do que um cidadão comum no Rio. De acordo com estatísticas apresentadas na CPI, a taxa de homicídio de policiais é de 265 num universo projetado de 100 mil agentes. O índice na população geral é de 26 por 100 mil habitantes. Na avaliação da Secretaria de Segurança, a grande circulação de armas de guerra entre as favelas alimenta o massacre. Nos últimos dez anos, a polícia apreendeu 2.615 fuzis no estado.


No dia em que foi atingido na cabeça, Paiva não trabalhava mais no Alemão. Havia sido transferido para a UPP do Andaraí, uma comunidade menos violenta. A pedido do serviço de coordenadoria das UPPs, estava naquela manhã no Complexo de Manguinhos, quase tão conflagrado quanto o complexo onde começara. Janaína encontrou o filho já na cama do hospital, com atadura na cabeça, ferimentos nas mãos e com os pés contraídos. Mesmo diante de um corpo inconsciente, teve o mesmo impulso repreensor de quando Paiva entrou para a corporação. “Meu filho, eu falei para você não ir para a PM”, disse ela, chorando. Na segunda-feira seguinte, dia 2, os médicos confirmaram a morte cerebral. Paiva tinha só 34 anos. Até a semana passada, a família ainda não sabia as circunstâncias do assassinato. 

Ninguém da polícia apareceu para dar explicações, tampouco para oferecer algum conforto com psicólogos ou assistentes sociais. Paiva sustentava a mãe e ajudava o irmão, desempregado e pai de duas crianças pequenas. Janaína teme ficar sem o pagamento de pensão do filho. Procurada por ÉPOCA, a Diretoria de Assistência Social da PM informou que vai “tomar providências”.    Um agente da lei corre dez vezes mais risco de morrer do que um cidadão comum no estado do Rio, segundo a CPI.

Algumas horas depois da morte de Paiva, o Batalhão de Operações Especiais (Bope) entrou na favela de Manguinhos. Começou um tiroteio que obrigou passageiros a se jogar no chão da estação ferroviária. O Bope procurava Thomas Bruno Dantas, de 30 anos, conhecido como Mongol. Dantas era acusado de chefiar o tráfico de drogas ali e de assassinar com 20 tiros nas costas o soldado da UPP Clayton Fagner, em abril de 2015. Chegou a ser preso, mas a Justiça o soltou após ele apresentar carteira de trabalho de mototaxista. Com renda diária de R$ 120, alegara que não precisava do tráfico para viver. No final da noite, a polícia anunciou que Dantas foi morto ao reagir à prisão. [uma certeza: Dantas não assassinará mais policiais.]

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A polícia do Rio ocupa outra indesejada liderança em rankings de violência: além de ser a que mais morre, é a segunda que mais mata do Brasil. Perde apenas para a de São Paulo em letalidade policial, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Em 2015, São Paulo registrou 848 mortes decorrentes de intervenções policiais, diante de 645 no Rio. De janeiro a novembro de 2016, de acordo com as estatísticas da CPI, a polícia carioca matou 815 pessoas alegando legítima defesa durante confronto com suspeitos – média de 74 homicídios por mês, um aumento de 32% em relação ao ano anterior.


Trata-se de um inequívoco retrocesso na pacificação de favelas, o palco principal da matança. As mortes em ações policiais haviam caído depois da ocupação dos morros mais violentos. O número de assassinatos de civis despencou de 855, em 2010, para 416, em 2013. Especialistas em segurança dizem que as UPPs reduziram o número de tiroteios com bandidos e, por consequência, os homicídios cometidos pela PM. A partir de 2014, os traficantes intensificaram uma tática de guerrilha para retomar territórios. Aproveitaram a brecha aberta pelo atraso nas gratificações, pelas péssimas condições de trabalho e pela alta rejeição da população.

Uma das últimas mensagens enviadas por Paiva antes de morrer nessa guerra inclemente foi para Janaína. Pelo WhatsApp, desejou à mãe um feliz 2017. Na semana passada, Janaína recebeu a reportagem de ÉPOCA num escritório de advocacia da Baixada Fluminense. Não conteve o choro durante boa parte da entrevista e ficou perto de desmaiar ao relembrar a tragédia. Um dos últimos anseios do filho, agora imortalizado na tela do celular, não se concretizará.


Fonte: Revista Época

 

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